SIMPLICIDADE
por Magnus Quandt de Freitas
Eu estava caminhando pela rua onde cresci, procurando sinais
da simplicidade. A sarjeta erodida pela chuva que descia a ladeira, mostrando a
saliência das britas outrora encobertas pelo cimento. Nela corria a enxurrada e
a molecada até o bueiro por onde a água sumia.
Cuidávamos de medir o tamanho da boca-de-lobo para não correr
o risco de sumirmos bueiro a dentro e os tampávamos quando íamos jogar taco
para não perdermos a bola.
A velha sarjeta estava lá. O asfalto novo, mais liso,
encobria a antiga rua onde, por vezes, rolamos do carrinho de rolimã ou da
monareta sem freio.
Ali, na ladeira, aprendi a jogar bola, tive meus primeiros
tombos e fiz entre as traves de lata, tijolos ou chinelos, o primeiro magnífico
gol. Também ganhei as primeiras marcas na canela, arranquei a primeira lapa do
dedão direito (que me transformou num canhoto) e fiz a primeira grande defesa - éramos atacante e goleiro na disputa de pênaltis
ou no gol a gol, quando só estávamos em dois. No futebol solitário, com a
parceria da parede toda manchada de boladas, era atacante, goleiro e locutor
nas memoráveis partidas contra os baldes e todo o tipo de adversário que o
improviso podia criar.
Vez ou outra a monotonia era quebrada por uma ninhada de
cachorros de rua que resolvíamos adotar e tentar esconder da terrível e assustadora
carrocinha que passava semanalmente pela rua. Então criávamos um comando para
combater este inimigo cruel, cuidando dos cachorros, escondendo-os e acreditando,
inocentemente, que as coisas se resolveriam como numa mágica, e que os cachorros estariam
para sempre protegidos.
A mesma mágica encontrava em casa, quando a comida aparecia
na mesa sempre no mesmo horário ou quando as roupas sujas reapareciam em nosso
armário, limpas e dobradas.
Vi crianças indo em direção da mesma escola que todos
frequentavam, fossem garotos dos cortiços, do BNH ou os filhos de doutor de
roupa impecável e com dinheiro para comprar todos os dias um lanche na cantina.
Escola que tinha como momento sublime o recreio, rachas na
quadra, correria no pátio e todo o tipo de brincadeira que a liberdade daqueles
tempos permitia, sem o solitário aprisionamento das tecnologias.
Descobri-me, de repente, que tinha habilidade com a bola.
Mais do que ser um bom aluno, isso me dava “status” e respeito, me colocando
fora das gozações (bullyng) e me mantendo nos melhores círculos de amizade
entre os garotos.
Muitas lembranças, como filmes, passaram em minha cabeça.
Dizem que não devemos voltar a lugares onde fomos felizes,
porque a felicidade não está mais lá, porque aquele lugar não nos pertence
mais.
Aquele lugar é meu para sempre e buscar remanescências
daqueles tempos, num muro que ainda resiste, numa calçada velha e desgastada,
numa esquina, num banco de praça ou numa casa quase irreconhecível, traz de
volta a essência do que sou hoje. É maravilhoso revisitar a felicidade da simplicidade,
revisitar meus pais, irmãos e amigos que, por instantes, estavam todos ali, correndo, brincando, gritando e sorrindo.
01/11/2024