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1 de novembro de 2024

SIMPLICIDADE (Crônica)

 


SIMPLICIDADE
por Magnus Quandt de Freitas


Eu estava caminhando pela rua onde cresci, procurando sinais da simplicidade. A sarjeta erodida pela chuva que descia a ladeira, mostrando a saliência das britas outrora encobertas pelo cimento. Nela corria a enxurrada e a molecada até o bueiro por onde a água sumia.

Cuidávamos de medir o tamanho da boca-de-lobo para não correr o risco de sumirmos bueiro a dentro e os tampávamos quando íamos jogar taco para não perdermos a bola.

A velha sarjeta estava lá. O asfalto novo, mais liso, encobria a antiga rua onde, por vezes, rolamos do carrinho de rolimã ou da monareta sem freio.

Ali, na ladeira, aprendi a jogar bola, tive meus primeiros tombos e fiz entre as traves de lata, tijolos ou chinelos, o primeiro magnífico gol. Também ganhei as primeiras marcas na canela, arranquei a primeira lapa do dedão direito (que me transformou num canhoto) e fiz a primeira grande defesa  - éramos atacante e goleiro na disputa de pênaltis ou no gol a gol, quando só estávamos em dois. No futebol solitário, com a parceria da parede toda manchada de boladas, era atacante, goleiro e locutor nas memoráveis partidas contra os baldes e todo o tipo de adversário que o improviso podia criar.

Vez ou outra a monotonia era quebrada por uma ninhada de cachorros de rua que resolvíamos adotar e tentar esconder da terrível e assustadora carrocinha que passava semanalmente pela rua. Então criávamos um comando para combater este inimigo cruel, cuidando dos cachorros, escondendo-os e acreditando, inocentemente, que as coisas se resolveriam como numa mágica, e que os cachorros estariam para sempre protegidos.

A mesma mágica encontrava em casa, quando a comida aparecia na mesa sempre no mesmo horário ou quando as roupas sujas reapareciam em nosso armário, limpas e dobradas.

Vi crianças indo em direção da mesma escola que todos frequentavam, fossem garotos dos cortiços, do BNH ou os filhos de doutor de roupa impecável e com dinheiro para comprar todos os dias um lanche na cantina.

Escola que tinha como momento sublime o recreio, rachas na quadra, correria no pátio e todo o tipo de brincadeira que a liberdade daqueles tempos permitia, sem o solitário  aprisionamento das tecnologias.

Descobri-me, de repente, que tinha habilidade com a bola. Mais do que ser um bom aluno, isso me dava “status” e respeito, me colocando fora das gozações (bullyng) e me mantendo nos melhores círculos de amizade entre os garotos.

Muitas lembranças, como filmes, passaram em minha cabeça.

Dizem que não devemos voltar a lugares onde fomos felizes, porque a felicidade não está mais lá, porque aquele lugar não nos pertence mais.

Aquele lugar é meu para sempre e buscar remanescências daqueles tempos, num muro que ainda resiste, numa calçada velha e desgastada, numa esquina, num banco de praça ou numa casa quase irreconhecível, traz de volta a essência do que sou hoje. É maravilhoso revisitar a felicidade da simplicidade, revisitar meus pais, irmãos e amigos que, por instantes, estavam todos ali,  correndo, brincando, gritando e sorrindo.

01/11/2024

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